Carta do Recife
“Somos o que a memória guarda” (Fernando Brant). Sem ela,
morre a identidade e se oculta à verdade para açoitar a justiça.
O 2º Encontro do Movimento
Memória, Verdade e Justiça do Norte e Nordeste do Brasil, que congrega os
comitês, coletivos e organizações diversas que lutam pela preservação da
memória, busca da verdade histórica e efetivação da justiça de transição, realizado
em Recife (PE), nos dias 22 e 23 de novembro de 2014, dedicado ao escultor e
militante político Abelardo da Hora, torna
pública a seguinte carta aberta aos brasileiros e brasileiras.
Um dos maiores atos de resistência
da humanidade é o resgate, a valorização e a preservação da memória individual
e coletiva sobre a qual se assentam os elementos fundamentais e necessários à
construção de uma sociedade que tenha a verdade como instrumento basilar para
se constituir justa, buscando a igualdade como valor universal entre os
semelhantes.
Ao
longo dos anos, acumulamos bastante neste debate e reunimos uma quantidade
extraordinária de documentos, depoimentos e resoluções, a exemplo dos encontros
de Cajamar (SP), abril de 2012, João Pessoa (PB) - julho de 2013 - e Vila Velha
(ES) - maio de 2014.
Contudo, em que pesem os avanços democráticos
obtidos desde a Constituição de 1988, ainda não efetivamos a justiça de
transição, mesmo após a criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV), cujo
objetivo é apurar as graves violações dos direitos
humanos ocorridas no Brasil entre 1946 e 1988.
Ainda
persistem gritantes violações dos mais elementares direitos da maioria da
população. No exato momento em que esta Carta é tornada pública, existe um negro,
uma mulher, um membro da comunidade LGBT, um indígena ou um camponês, um pobre,
enfim, sendo espancado, torturado, seviciado, humilhado por algum agente
público a serviço do Estado.
A prática da tortura e do
assassinato ainda é utilizada como método preferencial e fomentador dos
inquéritos policiais, porque os agentes que a praticam, mesmo cientes do crime
que cometem, carregam consigo a certeza absoluta da impunidade. Pior. Há ainda uma
cumplicidade de setores da sociedade, que findam por aplaudir silenciosamente
esta excrescência.
Tal legado foi institucionalizado durante
o regime ditatorial e só será possível extirpá-lo quando todos os crimes
perpetrados por agentes públicos, policiais ou não, no passado e no presente,
forem apurados e rigorosamente punidos. Trata-se de crimes de lesa-humanidade e,
por isso mesmo, são abomináveis, inesquecíveis, imperdoáveis e imprescritíveis.
Como
evidencia a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA sobre o
caso brasileiro, não há sentido em se falar de anistia para quem torturou,
seviciou, assassinou e ocultou cadáveres de cidadãos e cidadãs que se
encontravam indefesos e sob a guarda do Estado. Isto representou, na verdade,
uma autoanistia. Como anistiar quem nunca foi punido? Ao contrário, esses
senhores foram agraciados com medalhas, promoções e empregos, cortejados nos
salões das elites econômicas e recebidos com pompas nos palácios e ministérios.
Encaminhá-los à barra da Justiça para que sejam julgados e punidos
exemplarmente é dever de todos (as) os (as) democratas do Brasil.
Enquanto
esse passado recente não for minuciosamente revolvido, esclarecido, julgado e condenado,
sendo enterrados seus tentáculos, continuará ameaçando o presente, como
acontece nos vários casos de desaparecimento, no extermínio da juventude pobre
e, em geral, dos moradores da periferia geográfica e social do Brasil.
Todo
este entulho autoritário resulta na sobrevida da ideologia fascista em setores
da sociedade, especialmente dentro das Forças Armadas e das Polícias Militares,
claramente perceptível no currículo aplicado nas escolas militares, na existência
da Justiça Militar e nas relações com a Escola das Américas.
Na
atual conjuntura brasileira, a defesa e o aprofundamento da democracia precisam
ser reforçados para que se respeite o resultado das eleições e se faça uma
reforma política. Nossa frágil democracia ainda é manipulada sobremaneira pelo
poder econômico e pelo monopólio dos meios de comunicação.
Reconhecemos
os esforços da Comissão Nacional da Verdade e esperamos que seu papel histórico
seja cumprido com a apresentação - no relatório final - dos casos
pormenorizados dos horrores a que nosso país foi submetido por 21 anos
consecutivos, da relação dos brasileiros e brasileiras mortos e desaparecidos, do
nome de cada agente do Estado e de elementos colaboradores do regime envolvidos
direta ou indiretamente nesses crimes, para que sejam julgados exemplarmente
pela Justiça e pela História.
A
realização deste 2º Encontro e a divulgação do relatório da CNV são, para nós, um
marco nesta luta, mas o compromisso do Movimento Memória, Verdade e Justiça é
anterior e estará além da existência de qualquer comissão oficial.
Ressaltamos
ainda a importância histórica daqueles que tombaram na luta pela democracia no
Brasil, bem como o papel de setores progressistas da Igreja, sintetizados aqui na
figura de dom Hélder Câmara, e dos trabalhadores e trabalhadoras do campo e da
cidade.
Continuaremos
a mobilizar o povo brasileiro até alcançarmos o resgate dos restos mortais dos
companheiros e companheiras assassinados (as) e a punição aos torturadores.
-Lembrar é resistir!
-Para que ninguém
esqueça e nunca mais aconteça!